A última ida à Biblioteca
Algo muito estranho pairava no ar naquela quarta-feira. Era como se o vírus já estivesse por toda parte, ainda que nenhuma autoridade tivesse declarado oficialmente orientações corretas para a quarentena. Eu sabia, sentia. De alguma forma, tudo estava prestes a mudar.
Clichê, talvez. Mas parecia mesmo que estava em um filme. A insegurança e o desnorteamento no olhar de algumas pessoas; a cegueira estampada nas feições de outras que aparentavam, simplesmente, escolher a opção de crer que a ameaça não era real. Sempre é mais fácil, afinal.
Eu já havia decidido, naquele dia 18 de março, que não mais sairia de casa – a menos que fosse necessário – pelas próximas duas semanas. Estranhamente, me percebi diante de um misto de terror e euforia ao selar essa escolha. Isso era novo, absolutamente novo. O que jamais imaginaria é a falta enorme que fazem os abraços.
Em uma espécie de lampejo elétrico de consciência, antes de me confinar, decidi: vou uma última vez à biblioteca. Naquele misto de euforia ansiolítica interior diante da maior crise pela qual já vi o mundo passar em meus 25 anos de idade, algo parecia sussurrar: “você ainda tem as palavras”.
Percorri as estantes e, mais uma vez, absorvi o conforto daquela calmaria silenciosa das obras de quem já viveu outras crises, tão ou mais fortes que eu jamais ousaria dimensionar considerando minha juventude. Bibliotecas são templos. Há mais espiritualidade ali do que em qualquer igreja.
Alfas, Betas e Gamas
Fiquei mais tempo por lá do que deveria. Só que o tempo já não importava. Que fazer com ele agora, quando a morte disfarçada de vírus me convidada de novo a encarar a fragilidade de toda a humanidade?
Percorri as estantes sem encontrar nada específico. Qualquer livro capaz de me tirar da realidade externa cruel e das notícias horríveis que viriam nas próximas semanas, pressenti, bastaria.
Passei os olhos por aquele exemplar de capa roxa que se sobressaía. “Admirável Mundo Novo”. Aldous Huxley. Já estava na minha listinha há tempo. Quem sabe não era a hora exata?
Todo aquele mundo de Alfas, Betas, Gamas, Ípsilons. Indivíduos presos em uma sociedade autoritária e biologicamente hackeada. Dopados de “soma” (como é chamado o medicamento antidepressivo sem efeitos colaterais na distopia). Condicionados a sacrificarem qualquer sensação minimamente humana em prol do capital e da ordem social. Fabricados artificialmente para se contentarem a trabalhar em funções condizentes com suas castas.
Sexo banalizado. Mulheres deliberadamente prostituídas de acordo com a ordem normativa daquele status quo. Quimicamente castradas com anticoncepcionais.
Como você pode imaginar, finalizei o livro. E compreendo a mensagem. Tudo isso é tão perigosamente próximo ao andar de nossa sociedade “pré-coronavírus”. Bizarramente real. Espantosamente previsto por um inglês no ano de 1932.
Sempre é um mistério para mim. Como artistas são capazes de antecipar, de certa forma, algo tão semelhante a um novo modelo social mesmo décadas antes dele efetivamente se concretizar?
Paro. Reflito. Será que a quarentena está nos deixando loucos, ou será que estávamos loucos antes dela?
Admirável Mundo Novo
Qual seria ele? O de antes? O de agora? O próximo? Não sei.
Mas continuo sentindo falta dos abraços.