Diários de Quarentena – Carta 2, John Lennon

Querido Lennon,

Escrevo para contar que hoje pela manhã fechei os olhos e imaginei. Imaginei todas as pessoas vivendo em paz.

Contemplei um mundo de menos desigualdade, com menos apegos e crenças que geram ideais de separatividade entre nós. Exatamente como você descreveu.

Na verdade, tenho procurado fazer isso a cada novo dia neste período em que a morte cerca meu país. Faço questão de silenciar e sintonizar uma frequência positiva. 

De certa forma, em meus devaneios silenciosos, penso que compreendi o que você queria dizer quando escreveu sua canção. Mas não posso deixar de enfatizar o quanto essa utopia ainda parece distante quando a meditação termina e as notícias aparecem.

Há no meio do caminho o capitalismo selvagem, o racismo, o machismo, a cultura de estupro, a miséria. É como se a realidade esmagasse nossos sonhos de paz neste planeta.

Vou confessar: tenho muito medo de endurecer demais com tudo isso. Me pergunto em que momento exatamente a vida começa a fazer esse processo com a gente.

Quando ela passa a desmontar nossa inocência? Por que aparenta nos forçar a silenciar a alma em nome da sobrevivência até que todo o brilho em nosso olho se torne opaco? É algo tão sutil, mas triste.

Como canta o Ney Matogrosso naquela canção: 

“De repente a gente vê que perdeu

Ou está perdendo alguma coisa

Morna e ingênua

Que vai ficando no caminho…”

Mas essa carta não é para soar pessimista. Se você me conhecesse, na verdade, talvez saberia que tenho sido chamada por aí de otimista.

De fato, sou. Por mais dolorosa que seja a constatação de que a realidade é dura, queria dizer que você realmente não é o único sonhador

Eu também simplesmente me recuso. Me recuso a ceder à posição dos que creem que a vida é apenas um campo de batalha e não existe alternativa senão ceder ao lado assombroso e perverso da civilização e de minha própria sombra interna.

Ainda acredito – apesar de tudo – que cada ser humano carrega em si a capacidade de amar. Faço de tal ideal uma espécie de norte.

Existo pelo amor e, por ele, sou capaz de continuar. Vibrar paz e gentileza em um mundo no qual tudo se tornou produto – até a própria espiritualidade – nem sempre é tarefa das mais simples.

Mas talvez aí esteja uma pista. A vida nunca teve a pretensão de ser simplista. O que ela quer mesmo é nos estimular a sermos melhores a cada dia, mesmo quando só vemos sombras ao redor.

Você finaliza “Imagine” dizendo que espera que mais pessoas se juntem pelo ideal aparentemente distante do mundo inteiro vivendo como “um”. São palavras fortes que você semeou.

Elas continuam eternas aqui. Talvez eu também não esteja mais viva no futuro para ver o dia em que isso irá acontecer, mas sei que somos capazes de chegar lá enquanto humanidade.

Você nunca foi mesmo o único sonhador. Nem eu serei a única sonhadora.

Podermos ser como pontos espalhados em diferentes esferas de tempo, espaço e consciência, mas estamos de certa forma sempre conectados com quem partilha de nossos valores.

Obrigada por ter imaginado um mundo melhor.

Toda transformação realmente começa aí.

Um abraço,

Rafaela




4 respostas para “Diários de Quarentena – Carta 2, John Lennon”

  1. Querida Rafaela, também me perguntei ao longo da vida quando começamos a endurecer e a ficarmos opacos como você disse. Outras vezes, me perguntei em qual momento eu me perdi e fiquei a deriva ou sem direção. Algumas respostas tem sido muito duras mas carregadas de muito autoconhecimento, descobertas e redescobertas. Acho que esse tempo de quarentena tem sido assim para muitos de nós: uma louca viagem dentro da nossa própria existência.

    Um abraço, com muita emoção!

    Renata

    1. Com certeza, Renata!

      A quarentena foi um chamado inadiável para esse mergulho dentro de nós mesmos. Às vezes é duro, pois foi algo que nos foi “imposto”, não tivemos nenhuma possibilidade de escolha. Mas acredito que quem está vivenciando esse processo agora, sairá de toda essa situação muito mais forte. Saiba que você não é a única experimentando processos intensos..hehe

      Um abraço carinhoso e obrigada pelo comentário,
      Rafa

    1. Oi, Bibi!!

      Ahh, que linda. <3
      Amo ler em voz alta também, mas nunca experimentei fazer isso com textos meus haha
      Sobre o amor...o que dizer, né?
      Sigo achando que ele é mesmo a razão da vida.
      Ontem, inclusive, li em "Os Miseráveis": "Amar ou ter amado, isso é suficiente. Não peça mais nada. Não há outra pérola a ser encontrada nas escuras dobras da vida. Amar é uma consumação".

      Beijo e obrigada por estar aqui.

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