Memórias póstumas de um ano nômade

Eu adorava sentar na janela. Colocar os fones de ouvido, minha música favorita do momento e ficar ali quietinha. Só esperando o ônibus ou avião começar a andar, até que as paisagens se transformassem em traços coloridos ou nuvens. Se diluíssem, como a antiga versão de mim que ficava para trás a cada nova viagem.

Pensava comigo mesma que a vida, enfim, se transformara em uma versão do monólogo que a Lana Del Rey – assumidamente uma das minhas letristas contemporâneas favoritas – profere no clipe que antecede a canção Ride.

“Quando as pessoas que eu conhecia descobriram o jeito que eu estava vivendo, elas me perguntaram ‘por quê’? Mas não há sentido em falar com pessoas que têm um lar. Elas não têm ideia do que é buscar a segurança em outras pessoas e o seu lar ser onde você encosta a sua cabeça. (…) Eu não pertencia a ninguém e pertencia a todos. Não tinha nada e queria tudo, com um desejo por cada experiência e uma obsessão por liberdade que me levaram à uma loucura nômade que me deixava deslumbrada e aterrorizada. (…) E, se eu dissesse que não havia planejado para ser assim, estaria mentindo”.

Não sei se eu mesma seria capaz de descrever tão bem o que se passava dentro de mim. No ano de 2019, eu simplesmente precisava vagar. Havia me planejado para isso. Ainda assim, assumir esse lugar não foi simples. Se você é homem, sinceramente, provavelmente nem vai entender o que vou dizer agora.

É que, para uma mulher, entrar em um avião sozinha, rumo muitas vezes ao desconhecido – principalmente no Brasil – é um misto de sentimentos. Por um lado, sensação de independência e orgulho pela realização do sonho construído. Por outro, o medo gritante da exposição e da violência. Um país machista é perigoso, afinal.

Acontece que existe essa partezinha de mim que gosta de flertar com o perigo. Onde moro hoje, na verdade, ninguém gosta dele. Há um certo vício por estabilidade, uma necessidade de fugir do medo. O que, paradoxalmente, parece só gerar ainda mais medo.

Os muros estão cada vez mais altos. Há câmeras por todos os lados. E olha que estou falando de uma cidade pacata.

Talvez por isso eu não me encaixe tão bem. São vidas estruturadas demais, quadradas demais, presas demais. Acabam ficando tão entediados diante da própria existência que começam a comentar a dos vizinhos.

Sei lá. Acho um desperdício tão grande de vida. Cada vez mais tenho dificuldade em compreender esses comportamentos ortodoxos demais. Só que foi justamente a estrada que me fez ter mais clareza sobre tudo isso. Antes, eu era parte da bolha. Hoje, vivo nela, porém desprendida. Ainda que signifique, muitas vezes, estar só.

Meu ano nômade causou esse senso de não pertencimento em mim, mas não me arrependo. Ele dividiu meu coração em pedacinhos e lhes deixou espalhados por diferentes partes do mundo. O nomadismo me fez relembrar o que é a essência do amor.

Me fez recordar que é possível amar pessoas mesmo sabendo pouco sobre elas e que o mundo é cheio de seres humanos incríveis com ideais similares aos meus. Nós já não queremos mais tanto dinheiro ou posses. 

Queremos nos embebedar da vida. Já não temos tanto medo de ganhar ou perder. Nossa ambição maior é transformar nossa existência em arte. Deixar algum tipo de legado.

Nesta terça-feira gelada, reflito sobre tudo isso. O Coronavírus acabou com o nomadismo, pelo menos por enquanto. Por estar bastante ligada à comunidade de nômades por aí, sei que nossas almas ansiosas por desbravar o mundo estão sofrendo bastante com isso.

Ainda assim, restam as memórias de tudo o que vivi. Gosto de olhar para trás com esse sentimento de que tudo valeu a pena. Hoje, percebo com mais clareza que o nomadismo me trouxe também outro aprendizado importante no decorrer do caminho: às vezes, ficar requer mais coragem do que partir

O mundo é gigante e usá-lo como refúgio de si mesmo nem sempre funciona. Estar em quarentena no Brasil, na Europa, na Ásia ou qualquer outro lugar não nos permite fugir. Agora, chegou o momento de começar outro tipo de viagem. 

Não há saída: a maior aventura será para dentro da gente.

Por aqui, essa viagem tem sido intensa.

*A tradução foi minha mesmo e adaptada ao contexto do texto.





2 respostas para “Memórias póstumas de um ano nômade”

  1. Rafa, que texto maravilhoso, que delícia de ler! Você é incrível e me passou muita coragem, resiliência e sabedoria nessa escrita. A viagem por aqui também tá sendo intensa… basicamente sentei a bunda num carrinho de montanha-russa, em velocidade triplicada, comparada ao que já vivia antes. Grata pela reflexão, me fez bem <3

    1. Ai, Paty! Que maravilha ler isso, ainda mais vindo de uma escritora que admiro tanto, como você. Feliz de saber que minhas palavras te tocaram de alguma forma. Obrigada por ter tirado um tempinho para me dar esse feedback. Que sua viagem por aí seja linda também. Beijo enorme. :*

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