O aviso antes da exibição de cada episódio era um prenúncio do que estava por vir:
“Esta série contém descrições explícitas de abuso sexual de menores, que podem incomodar alguns telespectadores”.
A nova série criminal da Netflix incomoda. “Incomodar”, na verdade, é um verbo que não faz jus às sensações que ela evoca. Eu descreveria a experiência de acompanhá-la mais como um soco no estômago. Entrou para a lista de coisas mais nojentas que já vi na vida.
De forma resumida, o documentário dividido em quatro episódios demonstra como o bilionário Jeffrey Epstein utilizou de seu dinheiro, de sua influência e de sua inteligência perversa para criar uma rede internacional de tráfico de meninas menores de idade. Só pelo trailer você já pode ter uma ideia:
O foco eram, claro, meninas frágeis. Que vinham de famílias com problemas, muitas não tinham condições financeiras, tampouco perspectiva de melhorarem de vida. Epstein se alimentava, triunfava diante de sua impotência – o que devia aumentar sua sensação de poder mentalmente doentia.
Era um predador que seduzia pelo dinheiro, lhes chamava para fazer “massagens”, que rapidamente se transformavam em outra coisa. Depois, como um astuto abusador costuma fazer, lhes prometia pagar seus estudos no exterior, ajudá-las a crescer na vida. Bancava o pai bonzinho e convencia as próprias vítimas a chamarem outras amigas para as tais massagens.
Assim, facilmente, montou um esquema de pirâmide sexual com menores.
Cultura de estupro e a proteção do mais forte: o homem hétero, rico e branco
A série é reveladora em inúmeros sentidos, aliás. Primeiro, ao expor mais uma vez diversos nomes associados a Epstein. Príncipe Andrew. Bill Clinton. Kevin Spacey. Woody Allen. Harvey Weinstein. Este último que, graças às vozes corajosas de mulheres que encabeçaram o movimento #MeToo, foi parar atrás das grades.
Isso sem falar no próprio Trump. Sim: cada vez mais, ao que tudo indica, o presidente norte-americano não é perigoso só por não ter escrúpulos. Trata-se de um pervertido sexual em potencial.
Segundo, por elucidar de forma clara toda a estrutura de poder por trás do sistema que nos oprime como mulheres. Quando se trata de um homem rico, com influência, de cor branca e bons contatos, até mesmo a justiça se calou (foi comprada para se calar, dito de outro modo) diante das mais sólidas evidências. O que só aumentou o número de vítimas.
Eles fazem o suborno de um juiz aqui, melhoram sua imagem na mídia com uma filantropia ali e a coisa toda vai se arrastando. O esquema de Epstein revela o que há de mais podre no sistema capitalista: a possibilidade do dinheiro e da influência serem utilizados para silenciar e intimidar as sobreviventes. Não permitir que sejam ouvidas.
Ainda pior: culpabilizá-las. Algumas das que ousaram falar, conforme a série demonstra, foram automaticamente denominadas pela mídia como “prostitutas” ou “ex-prostitutas”. Eram menores de idade quando os abusos aconteceram. Eram vítimas. Ví-ti-mas.
Esta é justamente a essência da cultura do estupro: não só permitir que abusos aconteçam, como também culpabilizar a oprimida e, assim, viabilizar a continuação da violência. É perverso.
Sinto que nós ainda precisamos reforçar muitas vezes que um abuso mental ou físico contra a mulher nunca é culpa dela. Se você já ouviu comentários desnecessários sobre seu corpo, ou foi violentada por conta do uso de termos pejorativos que minaram sua autoestima, ou mesmo se já foi efetivamente estuprada, lembre-se de que isso não foi causado por você.
Não é sobre a roupa que você estava usando, nem sobre algo que você possa ter dito. A doença está na mente do predador.
Está na hora do nosso #MeToo
Enquanto mulher, me contorci na cadeira, suei frio e senti minhas entranhas apertarem a cada novo relato que a série trazia de uma mulher violentada. É uma experiência extremamente intensa ver tantas sobreviventes se pronunciando, chorando, relatando episódios semelhantes de abusos físicos e psicológicos. Uma após a outra.
Não vou entregar o spoiler de como ela termina, mas há um mínimo senso de justiça, pelo menos – embora incompleto. O fato é que a força e a cobertura do movimento que começou nas redes, o #MeToo, por meio do qual milhares de mulheres relataram ter sido violentadas e abusadas, garantiu a oportunidade das vítimas de Epstein se pronunciarem diante de um juiz que as ouviu. E colocou, finalmente, o pervertido atrás das grades.
Ainda assim, a verdadeira justiça não foi feita. Ao acompanhar o último episódio da série, você vai entender o porquê.
Mas e quanto às pequenas violências e estupros diários as mulheres ainda sofrem? E como fazer uma leitura disso aqui no Brasil?
Aproveito para recordar alguns dados estatísticos:
- Segundo dados da Agência Brasil, só em São Paulo o número de casos de violência contra a mulher aumentou 44.9% durante a pandemia. Imagine com o número de casos não reportados.
- Dados do Ministério da Saúde apontam que a cada quatro minutos uma mulher é agredida por um homem no Brasil. Um dos maiores índices de violência do mundo.
- Uma mulher negra recebe apenas 43% do salário de um homem branco, segundo levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios;
- Dados do IPEA publicados em 2012 constataram que as brasileiras trabalham até 26,6 horas semanais a mais do que homens;
A opressão não está apenas na violência física e psicológica. Está em todos os setores da sociedade machista em que estamos inseridas.
Ver as vítimas se pronunciarem no documentário da Netflix foi uma experiência tão difícil, quanto empoderadora para mim. Ficou ainda mais claro: nossa força enquanto minoria é coletiva.
Mulheres, nós, aqui no Brasil, também precisamos começar a falar.
Está na hora do “nosso” Me Too.
Ps: não costumo fazer uma chamada no fim dos meus artigos pedindo para que o leitor compartilhe meu texto. Mas, se você sentir que ler o que escrevi pode ser transformador para uma mulher, por favor, compartilhe. Obrigada.