Tenho 26 anos, o que se traduz em uma experiência de vida ainda bastante limitada. No entanto, ouso dizer que 2020 tem sido um dos anos mais difíceis na história do Brasil. Por quê?
Bem, pois está escancarada bem diante de nossos olhos a abismal desigualdade social de nosso país patriarcal. Tudo isso em meio a um genocídio (sim, assim descrevo o que acontece quando mais de 170 mil pessoas perdem sua vida, devido à necropolítica praticada por um governo).
Ontem mesmo, o LinkedIn divulgou nova pesquisa do Ministério da Economia, apontando que as mulheres concentraram 65,6% dos empregos formais eliminados na pandemia.
Em um lado da balança, os extremamente ricos ficaram ainda mais ricos: segundo levantamento do banco suíço UBS, a fortuna dos bilionários em meio à pandemia passou de 10 trilhões de dólares. Enquanto isso, a miséria extrema também avançou (onde uns têm demais, outros têm de menos, por obviedade).
Mais de 13,2 milhões de brasileiros, segundo dados do Cadastro Único do Ministério da Cidadania, estão em situação de extrema miséria.
Sair da bolha é dolorido e demanda coragem
Para contextualizar melhor a introdução deste texto (antes que alguém me chame de socialista de iPhone ou comunista), primeiro quero frisar: sei bem que sou uma menina branca, de classe média. E que, provavelmente, ainda vivo em uma bolha de inúmeras maneiras.
Só que isso não me impede de tentar enxergar outras realidades além da minha. Penso, inclusive, que é o mínimo dever que tenho diante dos privilégios que possuo enquanto cidadã.
Além disso, acredito que minha função como jornalista é realmente procurar falar por aqueles que não têm voz. Foi por isso que, no texto de hoje, decidi compartilhar cinco livros que me ajudaram a “sair um pouco da bolha” neste ano de 2020, justamente para compreender melhor o contexto que me cerca neste país.
Sair de bolhas é dolorido, eu sei. É um processo – muitas vezes desconfortável – reconhecer privilégios, mas isso nos engrandece enquanto seres humanos. Nos torna mais gratos e empáticos.
Além disso, enquanto nós da classe média – e alta, principalmente! – não observarmos para além das nossas bolhas, viveremos com medo da violência e da barbárie, que são frutos da desigualdade social.
Então, sem mais delongas, vamos aos livros?
Para ampliar horizontes: 5 obras essenciais
1. Quarto de Despejo, por Maria Carolina de Jesus
“Que efeito surpreendente faz a comida em nosso organismo! Eu, que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.”
Nunca passei fome na vida, mas fui capaz de ter dimensão da experiência com a história de Maria Carolina de Jesus. Em seu livro, amplamente comentado neste ano de 2020 e já citado em palestras da Feira do Livro de Porto Alegre e Araxá (que, aliás, estão rolando online pelo Youtube com palestras e convidados incríveis!), é possível mergulhar na vida dos moradores da favela de Canindé, em São Paulo, década de 50.
A obra, tristemente, segue atual. O mundo ainda está repleto de “Marias Carolinas de Jesus”. Basta você passar por uma grande cidade para perceber. Enquanto mulher, esse livro me tocou muito e fez com que pudesse desenvolver um senso de gratidão ainda maior pelas coisas mais simples da vida, como a beleza do entardecer e um prato de comida.
2. Os Miseráveis, por Victor Hugo
“O que é a história de Fantine? É a sociedade comprando uma escrava. De quem? Da miséria. Da fome, do frio, do isolamento, do abandono, da privação. Dolorosa negociação. Uma alma por um pedaço de pão. A miséria oferece, a sociedade aceita. […]. Dizem que a escravidão desapareceu da civilização europeia: é um erro. Existe ainda, mas não pesa senão sobre a mulher, e chama-se prostituição.”
Ainda não finalizei a leitura deste clássico calhamaço, mas já vale a pena dividir algumas palavras por aqui. Posso dizer, sem sombra de dúvidas, que a obra de Victor Hugo é das mais tocantes que já li em toda a minha vida. Principalmente porque versa sobre a miséria humana em todos os espectros possíveis: do âmbito financeiro ao moral.
Este livro tem me feito compreender diversos tipos de miséria que permeiam a existência. A do dinheiro é apenas uma delas – e que exige, de fato, muita atenção e compaixão por parte de todos nós que nunca passamos pela privação extrema.
Por outro lado, a obra também abre o coração do leitor para o que é realmente o aspecto mais importante da vida: amar. Sem amor, somos todos miseráveis (ricos ou pobres).
3. O Mito da Beleza, por Naomi Wolf
‘Depois do sucesso da segunda onda do movimento das mulheres, o mito da beleza foi aperfeiçoado de forma a impedir o avanço do poder em todos os níveis na vida individual da mulher. As neuroses modernas na vida de um corpo feminino se espalham de mulher para mulher em ritmo epidêmico.”
Enquanto mulher, também faço parte de uma minoria oprimida da sociedade. Mas, neste contexto, há ainda outras bolhas mais profundas, que afligem diferentes camadas sociais.
A obra da jornalista Naomi Wolf me fez ter a sensação de sair de uma nova bolha este ano: aquela que permeia a “obsessão pelo corpo perfeito”, que atinge tantas e tantas mulheres neste exato momento.
Neste livro, ela tece um argumento poderosíssimo de que, para brecar o avanço intelectual das mulheres e suas conquistas profissionais, a sociedade patriarcal associou o crescimento patrimonial da mulher à uma “beleza comprável”, por meio de cosméticos, cílios, maquiagens e horas gastas na academia.
Em outras palavras: a sociedade de consumo aprisiona a mulher em seu ideal de corpo, de modo que despendemos nossos salários (já mais baixos), muito frequentemente, em coisas relativamente fúteis – quando poderíamos estar lendo um livro, ou nos cuidando em casa mesmo…
A quem interessa, afinal, que sejamos ignorantes e apenas belos “cabides” maquiados, ao invés de seres pensantes?
4. O Conto da Aia, por Margaret Atwood
“Somos úteros de duas pernas, isso é tudo: receptáculos sagrados, cálices ambulantes.”
Embora seja ficcional, a obra de Atwood me fez sair da bolha no sentido de pensar profundamente sobre as diferentes experiências de dor que podem impactar a mulher em uma sociedade. Sobre como somos colocadas em caixinhas e, frequentemente, julgamos umas às outras pelos papeis que assumimos (mãe, amante, esposa fiel, “lésbica”, dona de casa, etc).
As palavras da autora despertaram em mim compaixão por outras mulheres que, com certa vergonha, hoje confesso que já cheguei a julgar. Me fez aprofundar também a compreensão de que a única forma de modificarmos a estrutura patriarcal, inserida no contexto do fanatismo religioso, é ajudando umas às outras, jamais competindo e apontando dedos.
ps: já escrevi uma outra resenha mais completa sobre “O Conto da Aia”, você pode ler neste link.
5. Admirável Mundo Novo, por Aldous Huxley
“As flores do campo e as paisagens têm um grande defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica.”
A distopia de Huxley foi perfeita para o momento de quarentena, pois acentuou minha percepção do que estava por trás do colapso social e econômico que pautou 2020: a diferença de salários e o nível de valorização que permeiam distintas profissões, além da alienação coletiva que ocorre, justamente, quando não saímos da bolha.
Por que as pessoas não pararam de trabalhar em meio à uma pandemia? Algumas não tiveram opção, precisavam do dinheiro. Outras não aguentaram o peso de sua consciência dentro de casa e, mesmo com bens acumulados para três gerações, acabaram saindo. Houve, ainda, aquelas que mal pararam para refletir sobre tudo o que está acontecendo e seguiram rotinas em um automatismo assustador.
A ignorância continua a mover grande parte da massa populacional do Brasil. E o maior problema dela é justamente o fato de ser mortal, como ficou claro com o Covid-19.
E você? Já leu alguma dessas obras? Se quiser me contar aqui nos comentários, vou adorar saber!
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