Pérola: um filme sensível sobre a tessitura dos afetos na passagem do tempo

Leo Fernandes e Drica Moraes em cena do Filme Pérola, com testas encostadas uma na outra em posição de afeto. Foto de Marcinho Nunes - Divulgação

Foto: Marcinho Nunes/Divulgação

O que nos afeta? Como lidamos com o que nos afeta?

Pérola é um filme “joia” que mergulha a espectadora e o espectador justamente na história de uma família brasileira que, na cidade de Bauru – interior de São Paulo -, começa a construir novos sonhos, em um novo lar.

Gentilmente, o diretor Murilo Benício nos apresenta as personagens deste núcleo e, a partir daí, propõe reflexões acerca desta tessitura dos afetos: a “matéria-prima” que constitui a vida dos seres humanos do início ao fim.

Com enfoque principal na relação mãe-filho, o filme apresenta uma espécie de “flashback” da história de Mauro (Leo Fernandes) que, diante da morte da mãe – apelidada de “Pérola” (Drica Moraes) – passa a rememorar suas lembranças. “Passeando” por memórias da vida adulta à infância.

Sonhos de cada um, os conflitos em relação ao dinheiro, as ambições materiais e espirituais, tudo o que atravessa a experiência humana dentro do contexto familiar. Com doses muito bem colocadas de humor e seriedade, o filme passeia por temas extremamente atuais.

Há janelas muito interessantes para eventuais debates abertas pela obra, como o envelhecimento da população e o impacto disto no contexto das famílias.

Também a possibilidade de uma família “acolher” um filho homossexual e, ainda, o alcoolismo (até que ponto a caipirinha é uma “diversão” e até que ponto é um “remédio” adotado para lidar com as dificuldades da vida e aquilo que não se consegue transformar em palavra?).

Outro tema que abre margem para diálogo é a inserção mais iminente da religião no contexto familiar e como ela atravessa sua estrutura, contemplando mais uma pauta genuinamente contemporânea.

Em especial no que se refere à ascensão das Igrejas Evangélicas. Para além de classificar esta presença religiosa como “boa” ou “ruim”, a ideia do filme é proporcionar conversa.

Naturalmente, passeando por todos os percursos citados, a adaptação cinematográfica da peça autobiográfica de Mauro Rossi também aborda a tão intensa relação mãe-filho. Esta que se constrói em ausência e presença.

Após o fim da sessão, conversando com as psicólogas Maria do Carmo Dilly e Carla Haupenthal tecemos ainda mais algumas observações. Em especial, a questão da confiança – sentimento bonito quando se solidifica na relação parental.

Como quando, por exemplo, Pérola pergunta a Mauro: “posso mergulhar? A piscina está limpa?”. Piscina, esta, que simboliza um projeto. O sonho daquela mãe. Que, por mais que demore para se realizar, vai ganhando estrutura com o tempo. Também, assim, é um “norte”, algo que move esta mulher adiante.

Afinal, como lindamente colocou a atriz Drica Moraes em entrevista ao “Conversa com Bial”:

“Estar vivo é fazer projetos”.

Talvez por consequência, a piscina simboliza também um elo que solidifica, traduz a conexão entre os componentes da família, em meio aos projetos pessoais de cada um.

Afinal, a cena inicial do carro que ficava “apertado” na garagem já parecia dar uma pista: para alguém ali, o espaço era pequeno demais para o tamanho do sonho. Este não cabia só no universo familiar.

Enfim, “Pérola” é sobre isto também. Pensar a família. Esta estrutura que permanece como símbolo de um porto-seguro, apesar das discordâncias, atritos, desencontros.

Mauro sentia-se incompleto naquele lugar, mas sabia que era um ambiente ao qual sempre poderia retornar “apesar de”.

Apesar de”, como diria Lispector.

O que cabe dizer sobre o filme em última instância, talvez, é que se trata de uma adaptação que versa sobre a poesia do cotidiano, as belezas e tristezas da passagem do tempo, as alegrias e entraves na comunicação. E aquele olhar que permanece comum: o dos afetos.

Deixa, ainda, algumas perguntas-legado: “o quanto de nossos sonhos cabem na realidade? Como equilibrar esta equação entre o universo do desejo e da materialização do mesmo? Como dividi-lo com quem amamos – dentro ou fora do núcleo familiar?”.

Por fim, uma dica última: prestigie nos cinemas. Streaming é gostoso, confortável, mas sair de casa e viver a experiência da arte e seu impacto no coletivo é potente. Afeta, de fato.

E você? Acompanhou “Pérola”? Sinta-se à vontade para partilhar suas percepções nos comentários.

“A Casa dos Prazeres” é um filme que faz questionar: por que uma mulher não se prostitui?

Atriz Ana Girardot, com cabelos longos e morenos e antebraço erguido - em fotografia sobre um fundo vermelho de bordéu - cena do filme "A Casa dos Prazeres".

Foto: Imovision/Divulgação

O que é o corpo humano?

O que é o corpo da mulher?

Um produto. Uma mecânica. O casulo de uma alma.

Talvez todas as anteriores hipóteses. A depender do contexto.

Ao pensar o modelo ocidental patriarcal capitalista, o grande mérito do filme francês “A Casa dos Prazeres” é justamente levantar estas questões.

Nele, a protagonista Emma Becker (vivida por Ana Girardot) decide viver na pele uma experiência “inusitada” para tecer a linguagem e mergulhar em profundidade na escrita de seu novo livro. E passa a se prostituir na cidade de Berlim.

O que ela busca, porém, de fato?

Talvez uma resolução de suas próprias questões de infância? A possibilidade de um prazer próprio? Pagar as contas e o aluguel do apartamento que divide com a irmã?

Ou, ainda, inverter a moral que esmaga a mulher socioeconômica e psiquicamente – aceitando receber um valor/hora de salário mais alto do que passar um dia na fábrica?

Seria, ainda, um ato de generosidade, do desejo de proporcionar prazer ao outro? A busca de um pai? Um cuidador? A necessidade de ouvir histórias? Ser vista?

Penso que o longa propõe todas estas interessantes nuances. Acompanhá-lo me fez lembrar de Naomi Wolf, em “O Mito da Beleza”, dizendo que uma pergunta essencial para compreender a prostituição não é: “por que uma mulher se prostitui?” – e, sim, “por que uma mulher não se prostitui?”

É fato que, em alguns momentos, o filme ainda me parece se equivocar em meio a certos clichês.

Por exemplo: a câmera lenta na cena de sexo com um possível namorado, alguém a quem ela aparenta se entregar “inteiramente” à libido para além do sexo mecânico.

O que se pode dizer, de todo modo, é que ao fim do longa a personagem parece encontrar o tom de suas palavras com precisão para a escrita de seu livro a partir da experiência vivida.

Quase invertendo o questionamento que proponho no início deste texto:

O que é o corpo do homem?

E, talvez, caiba ainda uma última “pergunta-legado” ainda mais interessante para mim e para você, leitora ou leitor:

Como seria para você, mulher que me lê, estar no corpo de um homem? Consegue imaginar?

E a você, homem que me lê, como seria estar no corpo de uma mulher?

Caso queira compartilhar a resposta, sinta-se à vontade nos comentários.

Filme em cartaz na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana.

“Ângela” é um filme que propõe uma reflexão urgente: como homens e mulheres podem se libertar de relações destrutivas?

Isis Valverde caracterizada como "Ângela", posando de biquini, chapéu e colar, com braços sobre a cabeça, na praia de Búzios.

Foto: Divulgação/Downtown Filmes

“Ângela” – cinebiografia estrelada por Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes (2023) – é um drama que retrata a história com fim trágico de Ângela Diniz (1944 – 1976), socialite mineira, abraçando como ponto de partida o relacionamento com seu então “parceiro”, Raul Doca Street.

Nesta produção inédita, acompanhamos a história de uma mulher. Humana. Em uma sociedade criada, guiada, legislada, orientada por homens. Como, em certa sentença do filme, a própria protagonista coloca:

“O problema é que a lei nunca está do nosso lado. A lei é feita por homens. Eternos garotos”.

Diante deste contexto, vemos o retrato de Ângela lidando com situações internas e externas conflituosas, onde causas e efeitos da estrutura patriarcal se misturam. Assim, mergulhamos em todas as complexidades de sua psique. 

Por vezes, ela aparenta estar muito segura de si. Em outras, muito confusa. Como a própria refere em dado momento:

“Às vezes acho que estou voando, às vezes acho que estou caindo”.

Fruto destas oscilações, vemos também uma mulher que por vezes é extremamente autoritária e, em outras, humilde o suficiente para se desculpar. Como ocorre no caso da relação conturbada inicial com a colaboradora da casa, Lili – vivida por Alice Carvalho 

Colaboradora esta que, aflita, acompanha o desenrolar da relação violenta e isolada de Ângela e Raul em sua casa de Búzios. E, por vezes, demonstra não saber exatamente como interferir. Em algumas cenas, inclusive, a câmera sugere que ela estaria pronta para medidas extremas (como o close em uma faca de cozinha).

Por sua expressividade e entrega no papel – a meu ver-, Alice explicita como o desenvolvimento da empatia entre mulheres pode ser um caminho para obstruir o ciclo de violência (embora nem sempre seja capaz de evitar o feminicídio, em um país onde a política de “não meter a colher” no relacionamento alheio ainda impera).

Penso que talvez – seja pelo intuito de “apimentar” o longa e/ou prender a atenção – há certo excesso de cenas de sexo e, com isto, o filme possa se equivocar em alguns momentos no sentido de confundir a ideia de que a expressão mais carnal da libido, por exemplo, pode conduzir a fins violentos. A uma espécie de tragédia.

Inquestionavelmente, sobretudo, a meu ver, Ângela traz o retrato de uma mulher corajosa e que teve uma morte absurda e precoce. Por feminicídio. Crime cuja pena, até 2023, poderia ser abrandada por argumento de “legítima defesa da honra” – ao qual apelou Raul após assassinar a ex-companheira com três tiros no rosto e um na nuca.

Por fim, penso ser válido ressaltar que o filme levanta algumas perguntas-legado de cunho psicanalítico: o que é este complexo de inferioridade do ser humano que pode levar ao ciúmes doentio? Como superar esta complexidade de amadurecimento psíquico para libertar homens e mulheres de relações desequilibradas e codependentes?

Justamente por abrir margem para estas questões, o filme se mostra extremamente essencial no contexto atual. E, apesar do enredo trágico, a mim particularmente é sempre um deleite ver Isis Valverde atuando. 

Parabenizo o Diretor Hugo Prata e os Produtores Fabio Zavala e Daniel Caldeira, também em nome de toda a equipe envolvida na produção. 

Viva o cinema nacional.

É possível evitar a Guerra? Eis uma pergunta-legado do filme “Golda: A Mulher de Uma Nação”

Trailer: Divulgação/Diamond Films

“Golda: A Mulher de Uma Nação” apresenta a brilhante Helen Mirren no papel de Golda Meier  – Fundadora e Ex-Primeira Ministra de Israel. 

Vemos, no decorrer do longa, a “Dama de Ferro israelense” (como a crítica avaliou) conduzir sua nação – coordenando a inteligência e a Força Militar – durante a Guerra do Yom Kippur (1973). Isto quando Egito e Síria atacaram Israel de surpresa no Dia do Perdão, um feriado religioso, deixando um saldo de mais de 2.500 israelenses mortos durante 19 dias de conflito.

Em sintonia com o jogo político, econômico e religioso que se estrutura – envolvendo também o Sionismo (a luta do povo judeu pelas terras de Israel) – o diretor israelense radicado nos Estados Unidos, Guy Nattiv, nos leva também aos bastidores das guerras “interiores” das personagens. Sobretudo, no que diz respeito às mulheres.

A de Golda, que se mantém firme diante das lideranças, mas, nos bastidores do “jogo de xadrez” , ainda age de forma autodestrutiva consumindo doses elevadas de cigarros e xícaras de café. Isto ainda em meio a sessões de radioterapia para um câncer que trata escondida. 

Também a de uma mãe, no papel de secretária, que datilografa as atas das reuniões políticas, sabendo que seu filho está na linha de frente de combate e será diretamente impactado pelas decisões ali tomadas. Seu drama – entre a documentação de fatos e lágrimas – traz a dimensão ainda mais tangível do impacto da Guerra sobre a vida humana.

Assim, imerso em uma fotografia de atmosfera sempre cinza e melancólica, o longa nos deixa algumas “perguntas-legado”, como referenciei no início deste texto:

  • Afinal, é possível evitar a Guerra? 
  • Por que o diálogo entre nações, tantas vezes, só se torna possível APÓS mortes e ameaças? Não seria melhor à humanidade poupar as vidas que se perderam antes?
  • Ao se considerar a trajetória política de uma mulher, de que modo seus sacrifícios pessoais em favor de uma nação se aprofundam ainda mais?

São alguns dilemas provocados. Em especial, quando o roteiro traz frases marcantes atribuídas a Golda. Por exemplo: “saber quando se está perdendo é fácil, difícil é saber quando se está ganhando”.

Em minha opinião particular, a Guerra – independentemente do lado vencedor – é, de algum modo, uma derrota. Quando o inconsciente triunfa em relação ao consciente e as trevas da psique humana ofuscam a luz, enfatizando todo o horror que gera a impossibilidade de uma comunicação humana não-violenta.

Isto, ainda, arrastando consigo um saldo negativo de valor inestimável e um lastro de dor irreparável. Aquele da perda de vidas. Portanto, não sei se seria possível evitá-la. Mas, como escreve Freud em “A Interpretação dos Sonhos”, em uma sociedade civilizada, “a tarefa da humanidade é evoluir”.

Se não for possível evitar a Guerra ainda por completo, então, que possamos seguir ao menos nortead@s por este ideal. Como? A partir da autoanálise, do autoacolhimento e da empatia para com as outras pessoas.

Por fim, creio que sim: as mulheres na política – como em outras profissões e diversos aspectos da vida em sociedade -, tendem a um sacrifício maior de suas vidas para ocuparem qualquer espaço de poder.

A começar pelo simples fato de sustentarem um lugar que não costumava ser legitimamente por elas ocupado – ainda que seu pulso seja firme e sua posição, respeitada. Tanto é que, nos momentos em que a “Síndrome da Impostora” atacava Golda, era Lou Kaddar (sua amiga e assistente, vivida pela atriz Camille Cottin), quem a acolhia.

Em minha percepção, uma prova de que, no que se refere às mulheres, só conseguimos ocupar espaços de poder se estivermos de mãos dadas, firmes e unidas.

E tu? Conseguiste acompanhar o filme? Se quiseres, sinta-se à vontade para deixar tua opinião nos comentários. 

Resenha – Filme “A Baleia”

ator Brendan Fraser com expressão triste e agoniada no filme "A Baleia"

Foto: A24/Divulgação

Até que ponto pode chegar o ódio por nós mesm@s?

Para mim, esta é a pergunta-legado do novo filme de Darren Aronofsky – diretor que figura na lista dos meus favoritos -, chamado “A Baleia”.

No longa, uma de suas mais recentes críticas ao modelo norte-americano capitalista de sociedade, deparamos com um personagem protagonista empenhado em um processo (que por vezes parece consciente, em outras não) de completa autodestruição pelo ato de comer compulsivamente.

Em minha percepção, o “comer compulsivo”, embora literal, é, no entanto, também uma simbólica metáfora pela busca de nutrir um buraco mais profundo deixado pelo vazio existencial e um vibrante, potente, irrefreável sentimento de culpa. Esta, motivada por uma série de razões que, no decorrer do longa, tornam-se mais nítidas.

Entre elas, questões demasiadamente humanas e atuais: “fracasso” na relação matrimonial, dificuldades na relação parental, um amor homossexual tido pela sociedade – e a religião, em especial – como “errado”. Religião esta, aliás, que, diante de seu próprio feito de destruição psíquica, parece depois querer enviar “mensageiros” dispostos a corrigir os danos por ela mesma criados. 

O filme apresenta discussões que podem se estender por horas em distintas direções, permeando temas como o surgimento de seitas, os danos em potencial causados pelo teletrabalho, a dificuldade em se estabelecer um diálogo não-violento nas relações, o distanciamento social, o sedentarismo e a ascensão de ideologias de extrema-direita.

O que se pode constatar ao longo do filme, sobretudo, é que observar alguém em processo autodestrutivo, como já evidenciou Aronofski em outras de suas obras, simboliza uma das mais doloridas experiências humanas. 

A agonia talvez seja proveniente justamente pela constatação de por vezes ser impossível para alguém de fora refrear no outro esta necessidade tão mórbida de se punir. O trunfo final da obra é, em minha percepção, escancarar a questão: até que ponto cabe a nós decidirmos por outro alguém seu direito de viver e morrer? E como isso se dará?

 É legítimo acolher o suicídio (consciente ou inconsciente) de alguém, quanto este alguém escolhe ir? Ir é, afinal, uma escolha? Já não estamos todes indo, de todo modo, em direção à morte?

Talvez o que nos caiba, sobretudo, é cuidarmos também um pouco mais de nós mesmos. Isto é um modelo de autoamor.

Afinal, como em dado momento constata o personagem, o desejo de ajudar ao outro já é inerente ao ser humano – embora, muitas vezes, seja justamente aí que “passamos os pés pelas mãos”. 

Quanto ao outro, portanto, talvez procurar causar o mínimo de dano possível já seja um imenso trabalho. Um pouco de estrago, sob a perspectiva de Aronofski, possivelmente seja inevitável.

Mas que possamos amar a nós mesm@s, então, pode ser o mais próximo a uma mensagem de esperança deixada pelo diretor. A possibilidade de amparar outro alguém só é possível quando também nos amparamos.

E você? Acompanhou o filme? Sinta-se livre para expressar sua opinião nos comentários.

RESENHA – Livro “Uma Duas”

Terminei de ler “Uma Duas”, de Eliane Brum, depois de um dia de faxina. Externa e interna.

Lavei roupas e louças pensando se haveria uma forma mais suave de fazer aquilo. Algo que fizesse as coisas durarem mais.

Mas a crueza de minha percepção se alinhou ao estarrecimento diante das últimas páginas do livro. Sim, procurar mais delicadeza é sempre possível. No entanto, em algum momento, na vida, tudo vai se desgastar de qualquer forma.

Foi o que me fez constatar a narrativa tecida pela jornalista, revisitando uma relação conturbada entre mãe e filha. Isto, ainda, diante de uma observadora exigente, que explicita com urgência esta impossibilidade de cessar o fim de uma existência sem nenhum arranhão.

A Morte.

Importante dizer: uma narrativa apresentada na versão de ambas: Eliane, em sua imensa generosidade, escancara em palavras dois lados de uma história marcada por amor e dor. A da mãe. A da filha.

É uma trama, a meu ver, de tom psicanalítico e social. Duas vertentes que se cruzam de certa maneira, prendendo atentamente quem lê. Porque são palavras que falam de nós. Mulheres. Homens. Pessoas.

Para ir mais além do raso, a grande beleza da história de Eliane, em minha percepção, é levantar questões pessoais – transpondo-as ao coletivo.

  • Onde começam e terminam nossos corpos?
  • Como a presença de nossos genitores em nós nos torna seres sociais – em termos positivos e negativos? O quanto nos ajuda? O quanto nos destrói?
  • Como experiências de abuso afetam estas percepções?

São perguntas-legado do livro de Eliane. Perguntas que, em meu entendimento, são urgentes que façamos ainda em vida.

Antes da morte nos olhar pelo canto do olho, derrubando falsas ilusões e alienações esmagadoras.

Afinal, como a autora escreve, “a morte encerra todos os jogos”. E, mesmo quando não aparece de modo iminente, sua temática necessita se fazer presente em nosso existir.

A vida, afinal, só ganha perspectiva diante de um contemplar da Morte, penso.

A ti que me lês, recomendo uma vírgula: aprofundar estas questões, seguir a reflexão. E, claro, em especial sugiro a leitura de “Uma Duas”, disponível pela Arquipélago Editorial.

Uma carta para a Alegria

foto da escritora rafaela dilly kich com o rosto no sol, vestido laranja, brinco manual de folha natural e colar de conchas

Alegria,

Eu e tu somos gêmeas.

Plenas, quando juntas.

Mas nem sempre consigo segurar você pela mão.

Aliás, nem sei se na vida o ideal seria “segurar” coisa alguma.

Segurar machuca.

Vi outro dia um passarinho pousar no banco do Parcão sob a luz crepuscular. Ficar um tempo ali. Voar embora.

Rememorando a cena, entendo melhor. As chegadas e partidas. Acolhimentos e abandonos.

O pássaro pousa. Fica. Quando decide, vai embora.

Porque para ele, diferentemente de para nós, humanos, a noção de abandono sequer existe. Tampouco a de rejeição.

Na Natureza, a liberdade é o estado natural das coisas.

Prender-se é o que simboliza o anti-natural.

Será que é assim que os relacionamentos terminam? Quando percebemos que realmente não é mais possível “segurar”?

Talvez esta seja uma das etapas. A outra é a incongruência, possivelmente. De valores. Também os sonhos distintos.

Quando o estar junto torna-se mais vazio que presença. E nada mais “alimenta” a relação. O silêncio – antes confortável – torna-se pesaroso.

E você, Alegria, some. Tornando evidente a frase de Frida Kahlo: “onde não puderes amar, não te demores”. Porque o Amor é um imperativo para você, certo?

Você some sem o Amor.

E, quando passa o ponto do fim, Alegria, você parece se apresentar sempre acompanhada de Vergonha, pois você não sabe ser falsa.

Você é ou não é.

E eu te quero sendo. Inteira. Genuína.

Mas como ir embora sem que o outro se sinta abandonado? Compreendendo a ilusão provocada pelo apego.

O outro só pode sentir-se abandonado diante do apego. E o apego, como escreveu Nilton Bonder, é a grande traição.

Uma traição à possibilidade do outro ser livre. E, como consequência, uma traição à liberdade de si mesmo.

Claro: é preciso delimitar espaços e contornar arestas para não machucar demais a nós mesmas e ao outro. Para que ele possa compreender a partida.

Mas seguir é preciso. Para respirarmos leves.

Por nós. E por quem amamos.

Ir embora, diante de um inevitável fim, é também um gesto de amor dos mais genuínos e sinceros.

E você vai comigo, Alegria.

RESENHA – Filme “Close”

Cena dos amigos Léo e Remi no filme Close. Um está ao lado do outro, com as cabeças próximas. Léo olha para frente - direcionando o olhar a outra pessoa. Remi também, mas com a cabeça de modo mais lateral.

Foto: A24/Divulgação

“De repente a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa…morna e ingênua que vai ficando no caminho.

Que é escuro e frio, mas também bonito, porque é iluminado pela beleza do que aconteceu há minutos atrás”.

Os versos são de Ney Matogrosso. Me vieram à mente ao relembrar o filme francês “Close”, dirigido por Lukas Dhont.

Um longa lindamente triste. Tristemente lindo. Nele, plantações de flores mimetizam ciclos de vida, morte, perdas e renascimentos – acompanhando a trajetória de dois amigos de infância, Léo e Remi.

Cena após cena, o(a) espectador(a) se vê tensionado a refletir:

Quando é que morre a inocência em uma criança? E quando esta “morte” se torna tão abrupta a ponto da dor de seguir vivo parecer insuportável?

Talvez seja esta a grande questão proposta pela narrativa.

É extremamente angustiante ver a amizade e sensibilidade entre dois amigos ganhar ares de malícia e passar a ser alvo de bullying.

Por que e como ainda permitimos que a cultura de nossa sociedade destrua a pureza das relações pela imposição de comportamentos idealizados por papéis de gênero?

Assim como mencionei que o filme “A Primeira Morte de Joana” apresenta este debate enfocando na relação entre duas meninas, acredito que “Close” nos permite analisá-las no contexto da relação entre dois meninos.

Tais reflexões são pontos-chave para compreendermos a violência mortal que espreita os jovens também nas escolas do Brasil.

Particularmente, creio cada vez mais que a violência começa pela morte do “sentir”.

Toque. Olhar. Afeto. Proximidade. São expressões de humanidade. E não podem ser perdidas pelo temor à sexualidade.

RESENHA – Filme “A Primeira Morte de Joana”

cena do filme "A Primeira Morte de Joana", uma menina sopra levemente o rosto da outra

Você quer entender o que acontece com jovens e crianças no Brasil?

Eu quero. Ainda machuca a lembrança dos atentados que vimos acontecer em escolas do país neste ano.

Para onde caminhamos na educação? E por quê?

Mais uma vez, a arte pode trazer pistas.

Acompanhei recentemente uma exibição do filme “A Primeira Morte de Joana”.

A história narra a trajetória de Joana e Carol – duas amigas que frequentam a mesma escola no interior do Rio Grande do Sul.

👇 Temas muito atuais permeiam o enredo:

🔸 machismo estrutural escancarado (o que “gurias” não podem fazer e “guris” podem)
🔸 sexualidade como “tabu” (tema pouco abordado em casa e na escola)
🔸influência cada vez mais notória da religião no contexto familiar e escolar
🔸 bullying escolar por parte de outr@s jovens que, talvez por medo e repreensão dos próprios pais, são incapazes de aceitar qualquer expressão do “diferente”

Um filme que causa tristeza, mas também aponta caminhos envolvendo a beleza da sensibilidade que Joana e Carol se descobrem capazes de preservar pelo olhar, o toque, a diversão inocente – mesmo entre brigas e reconciliações comuns a esta fase da vida.

Há sempre esperança.

Mas, para que esta permaneça acesa, a arte há de se preservar viva.

É o que se passa diante dos olhos de quem acompanha o desabrochar das protagonistas em meio à observação dos cataventos de Osório, que rodam incessantemente marcando a passagem de um tempo… A juventude!

Esta tão decisivamente penetrante no íntimo para a formação psíquica do ser adulto posterior. E que merece atenção e olhar atento, amoroso e afetuoso.

Agradecimento especial à Paula Taitelbaum pela indicação do filme. Recomendo que você também acompanhe.

A relação completa de todas as salas está disponível em @aprimeiramortedejoana

Foto: Okna Produções/Divulgação

RESENHA – Abra e Leia

Um dos aspectos mais belos do ato da escrita, a meu ver, é a possibilidade de eternizar o cotidiano em palavras.

“Abra e Leia”, livro de contos de Milton Ribeiro (Editora Zouk, 2021) é exatamente isto: um presente elegante que, ao ser desembrulhado, traz histórias que provocam lágrimas, riso, reflexão social, alívio à mente.

Também uma importante lembrança de que a vida “comum” é, em verdade, uma profusão borbulhante de pequenos grandes atos magníficos – ora sincrônicos, ora caóticos.

Atos estes que conduzem a leitora e o leitor a, invariavelmente, lembrarem de suas próprias perdas, ganhos, sortes, azares e amores vividos.

Como ocorre quando se escuta uma orquestra, Milton convoca também nossa subjetividade à interpretação: alguns contos parecem inacabados. Um convite à imaginação.

E, de fato, se não houvesse a palavra somada à imaginação, para onde iriam todas estas histórias?

Grata a ti, Milton, por eternizá-las.

O autor que se propõe a observar a vida sob a lente do detalhe, do aparentemente banal – e nem por isso menos extraordinário – é um ser humano generoso, acredito.

E a ti que me acompanha por aqui, fica esta baita dica de leitura. 😊