A delicadeza da serenidade resoluta

menina com mãos abertas segurando flor amarela

Durante a pandemia, eu a vi dia sim, dia não, subindo a pé a íngreme lomba no topo da qual fica a minha casa – e a dela, a cerca de uma quadra de distância. Em um dia, trabalha fora, cuidando de idosos em um lar, noutro fica em casa. Limpa, lava roupa, cozinha, debulha o milho.

Ela tem o tronco um pouco curvado, mas não muito. Percebo em seu olhar que não se deixa curvar. É resoluta. Mas sem perder a doçura.

Além de resoluta, também é habilidosa com a costura. No decorrer do isolamento, comprei um tecido e levei para ela. Costurou um lindo avental para mim – um marco de minhas primeiras aventuras culinárias no isolamento.

Certa sexta-feira, depois do trabalho pesado – ela no lar, o marido no campo – vi o casal tomando uma cerveja. Instante merecido de tranquilidade e desprendimento. Os filhos jovens, próximos da pré-adolescência, brincavam por perto com suas bicicletas. Durante a pandemia, só conseguiram acompanhar as aulas da escola pelo celular.

De vez em quando, reflito sobre a vida dessa minha vizinha querida. Penso na dimensão dela e na minha. Ao observá-la, imagino que por vezes reclamo demais por coisas bobas…

Mas penso também sobre o que aconteceria caso ela pensasse sobre transpor sua condição. Transgredir a rotina. Talvez não precise mesmo disso, no fim das contas. 

Sem ao menos saber, minha vizinha me mostrou que quando enxergamos algum senso de propósito no que fazemos e não brigamos com o mundo, a vida pode ser de uma leve e belíssima serenidade. Uma simples sutileza. Independentemente de quanto dinheiro se tem – ou não.

Quem sabe eu é que seja questionadora demais para usufruir desse nível de contentamento. Afrontar o “status quo” pré-estabelecido para as mulheres é parte de quem sou, da minha essência enquanto existência.

Só que agora, quando tudo isso fica pesado demais, lembro da minha vizinha. Sua serenidade obstinada me inspira a não levar tudo tão a sério.

Por isso, agradeço. Sem querer, o contraste entre nossos mundos – próximos e tão distantes – me possibilitou uma visão mais ampla.

Essa é a beleza dos encontros. “Seu olhar melhora o meu” – a verdade proferida por Arnaldo Antunes sempre é possível, se nos permitirmos vivenciá-la.

Durante a pandemia, nosso encontro me possibilitou exatamente isso.

Nua em palavras

mulher de costas segurando flores

Escrever é como despir-se. Então, aqui estou eu. Nua diante de você.

Julgue-me. Faça à vontade. A carne feminina sempre lhe serviu bem para isso, não?

Imagine eu, aqui, mulher. Escrevendo. Como ouso? Você está em minha mente, pois a cada letra me pergunto o que vai achar disso tudo.

É patético. Ridículo que eu me importe tanto. Porque meu sexo não deveria ser premissa para essa carga mental toda que me vi obrigada a carregar.

Ah, mas eu já suportei calar-me. Muito. Agora não mais. Você vai me julgar de qualquer forma. Então, de que importa?

Nova (ou velha) demais. Bonita (ou não). Magra (ou não). Inteligente (ou não). Metida (ou não). Vamos lá: escolha seu adjetivo favorito.

Ou até mais de um. Não me importo. Aplique-o a mim.

Já disse…estou nua aqui. Aponte seu dedo. Tanto faz. Só não espere que eu pare.

Vou torcer, chorar, sangrar, gritar. E, depois de tudo, minhas palavras vão continuar aqui.

Você sabe o que é descobrir que tem uma voz depois de tê-la calado por anos? Eu não a silencio por mais nada neste mundo.

Apedreje uma escritora nua e ela continuará sangrando em verbo.

Poderíamos ser poesia

lua minguante em fundo escuro

Eu dançava sob a lua. Ou era a lua que dançava sobre mim? Não saberia dizer, pois no movimento as perspectivas se misturavam e já não havia mais nada claro.

Quem era a lua? Quem era eu? Alívio. Não saber quem sou. Não importar quem fui. Não me preocupar com quem serei.

O estado de não-personalidade tem gosto de liberdade. Aquele mesmo sabor que eu experimentava ao entrar em um avião ou pular em um ônibus rumo a qualquer lugar.

A possibilidade de ser, sem ser meu nome, minha casa. Sem ser o que os outros esperam de mim. 

Antes eu procurava tudo isso fora, sem saber que estava tudo dentro – apesar de às vezes também ser mais fácil chegar ao interior quando nos jogamos a percorrer o universo exterior.

Tenho saudade do mundo. Me pergunto se ele também sente minha falta.

Todas as pessoas que ainda não conheci, todos os lugares que ainda não visitei.

Será que me esperam?

É estranho estar presa em quatro paredes – é desolador, mas também libertador. Descobri que existe essa música dentro de mim, incapaz de ser ouvida antes na correria do capitalismo exageradamente acelerado.

A ideia de ser melodia me soa cada vez mais bonita.

Lembrei de um amigo que, dia desses, depois de ouvir uma música que toquei no ukelele e enviei para ele, me descreveu a experiência assim:

“E como atravessar uma floresta com sol e conseguir sentir a textura da umidade no ar.”

Será que não bastaria isso da vida para essa tal felicidade? Despertar algo profundo em alguém. Tornar o dia de outra pessoa melhor. Cantar. Abraçar quem ainda está perto.

Poderíamos ser poesia em um mundo de pedra.

Eu poderia ser como a lua que ilumina. Se já nos confundimos, por que não? 

É que a sombra do Brasil atual, cruel, ainda insiste em tentar nos engolir.

Isso às vezes me faz chorar.

E o problema do choro isolada é que ele dói ainda mais.

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Quer ler mais?

Confira meus títulos publicados:

E-book de Poesias “Fragmentos.”

Livro Virtual “O Nascer da Escrita: encontre sua voz (e a de seus clientes) por meio das palavras.”

Distopia ao inverso

menina olhando pela janela de um carro

Desperto tranquila, pois a vida não me pesa sobre os ombros. Ela tem tons leves, sem estresse financeiro ou emocional em excesso. Preciso dar conta das demandas do trabalho, claro, mas agora pelo menos sou remunerada pelo tempo despendido nas tarefas domésticas.

Além disso, não fico ansiosa pela obrigação de estar sempre bela. Não existe mais “padrão de beleza”. Assim, nós também paramos de nos comparar umas às outras e de fofocar pelas costas.

Quando o vizinho estaciona seu carrão na garagem, isso não me irrita. Afinal, nossos salários são equivalentes. Só não tenho o “carrão” porque prefiro viajar o mundo com o que ganho – um valor justo, digno e merecido.

Explorar os continentes como viajante mulher “solo”, aliás, tampouco me amedronta. Com a equidade salarial, o maior respeito à Natureza e a igualdade entre os sexos, a violência contra a mulher é praticamente inexistente.

Não tenho frio na barriga, temor de andar pela rua e ser estuprada. Aliás, os homens estão mais gentis por todos os lados. Eles deixaram aflorar seu lado feminino, pararam de brigar com ele, agora são mais empáticos, amorosos e gentis. 

Quando ando de bicicleta pelas ruas, observo as casas e me alegro. Não vejo só mulheres debruçadas sobre janelas e calçadas esfregando o chão. Às vezes são elas, às vezes são eles. E também há mais famílias com variadas composições (não há mais nenhum tipo de preconceito contra gays, lésbicas e a comunidade LGBTQI+).

Sobretudo, há uma vibração de respeito e afeto por todos os lados. O patriarcado parece ter ruído, os líderes fanáticos religiosos se foram e a nova lei sobre a terra é o amor. 

Poderia ser tudo verdade, como um voo em direção ao futuro utópico das mulheres e dos homens no planeta. Sou capaz de contemplá-lo, embora a realidade ainda esteja distante.

Não creio ser impossível e é por isso que escrevo, resisto e luto. Amparada pelas que vieram antes de mim e com a certeza de que, se não chegarmos a esse lugar ideal, pelo menos chegaremos a um lugar melhor, mais lúcido.

Espero que outras e outros acreditem comigo.

Carta anônima

imagem da sombra de uma mulher com flores na mão

Se gostar de poesia, fique.

A gente encontra um cantinho para desaparecer do mundo que ameaça nossa sensibilidade. Procura a beleza no meio do caos. Recusa esse tempo do relógio que já não mostra mais as horas, só exibe ponteiros gritando ansiosamente: corra, corra, corra.

Sei que é assustador, afinal é ir contra tudo e todos que estão ao redor. Talvez seja até intimidante quando olharmos nos olhos. Porque eles revelam tanto e já não se faz mais isso, né? Mas eu topo me desnudar, já não ligo mais pro “certo e errado” lá de fora.

Acontece que não sei não amar. Na verdade, eu sei amar. Mas não se assuste, ou tome isso como algo pesado de se carregar. “Ela tem sentimentos”. Sim, na era do Tinder, eu tenho sentimentos. Você sabe que pessoas como eu não estão lá, de qualquer forma.

É porque sou essencialmente assim que já chorei oceanos. E não me importaria de fazer tudo de novo, nunca seguraria ninguém à força se quisesse partir. Não é das dores do amor que tenho medo. O vazio de não sentir nada dessa vida apressada é que me assusta mais.

Agora, isto é fato: vou contar sobre ser mulher e talvez isso seja um pouco difícil de ouvir. – mas é por uma causa maior. E juro que vou tentar ser amorosa nisso, não raivosa, mas tampouco passiva. 

De fato, é complexo mesmo explicar as subjetividades que perpassam nascer e viver em uma sociedade machista e agressiva dentro de um corpo feminino. Antes eu olhava para mim mesma como se fosse composta de partes segmentadas. 

Entendo que soa estranho. Mas é que seu corpo nunca foi reduzido exclusivamente a uma “pele”, um “cabelo”, uma “nádega”, um “braço”, “um abdômen”. Nem tampouco seu intelecto foi analisado como algo “à parte” de tudo isso. 

Antes de chegar aqui, nestas palavras, eu tive que me descobrir inteira, recolher os pedaços, me perceber completa em mim mesma. E não foi fácil. Teve muito suor, cansaço e confusão envolvidos nesse processo. 

É por isso que essas conversas vão acontecer, não posso evitar. Porque elas são necessárias para um lugar de igualdade entre nós e não teria como ser diferente. Não estaria disposta a voltar lá para o começo. Seria uma loucura inconcebível.

Mas eu também nunca estaria aqui para viver em pé de guerra. Como eu disse, não sei viver nada disso sem amar.

Gosto de agradar. Danço, canto, brinco, leio. Se existe uma verdade é que não preciso de muito além de palavras e conversas que me façam esquecer do mundo e toda seriedade que é ser adulta para estar serena e feliz. 

Não ligo pro seu cargo, não me importa o quanto você ganha. Essas conversas me entediam um pouco.

Bom…e tem isso. Eu escrevo. 

Então, se gostar de poesia, fique. Quem sabe eu te transformo em alguma.

Maresia ilusória

foto aérea de uma praia paradisíaca na Indonésia

Desperto já imersa em pensamentos melancólicos. Maldito padrão típico de determinados dias de isolamento. 

Necessito desesperadamente de algo que me leve daqui. Queria estar em uma praia, poderia ser em qualquer outro lugar do mundo.

Preciso sentir outros aromas. Meu país ainda cheira a necrotério.

Sento. Medito. A única solução capaz de me salvar da insanidade ao redor.

Não é que não pense em nada. Mas consigo me transportar a algum outro lugar.

Entro na água e a temperatura me arrepia, arrancando o torpor.

A areia me aterra.

O silêncio da imersão total no azul pacifica.

As falésias me fazem sentir pequena, dimensionando a brevidade da vida e, ao mesmo tempo, o milagre que é existir.

As gaivotas traduzem a beleza da fauna, as árvores colorem os olhos de verde exaltando a perfeição da flora.

O sal cura as partes do corpo que doem.

O balançar das ondas me faz lembrar do trecho da canção da Lana: “pegue uma onda e absorva a doçura, pense bem…a obscuridade, a profundidade, todas as coisas que me tornam quem sou”.

Tudo aqui tem sabor de paz.

Retorno do devaneio com uma sensação doce e amarga. Ainda estou presa.

É tudo ilusão.

Mas sinto que, em breve, a maresia não será só miragem.

Então, a melancolia já não me esmaga.

Sigo apenas pensando que a vida é a poesia mais trágica e estupidamente linda já escrita por alguém.

*texto originalmente escrito em 29 de novembro de 2020.

Quando deixo a superfície

foto sob perspectiva de cima das ondas batendo no mar

As nuvens passavam, eu pensava sobre profundidade.

E me assustava. Talvez diante da ideia de jamais encontrar alguém capaz de mergulhar tão fundo na vida comigo. 

Por que não me contento com o banal? 

Tentei. Sei bem que tentei. O problema é que já não me percebo capaz de habitar contextos em que as conversas são tão iguais.

Tudo é trabalho, política, dinheiro, meta. Investimento, plano, matéria.

Concreto. Lucro.

Só que eu queria falar das flores. Dos contornos. Das sombras que formam desenhos nas paredes.

Daquilo que gostaria de fotografar. De arte. De morte e vida também.

Música. Poesia.

Por que o abstrato não interessa a ninguém? Só por que não é produtivo?

Bem, este é meu coração.

Tentei congelá-lo para me adequar ao sistema. O problema é que cada dia tinha um resquício de suicídio. 

Estava desnutrida de existir.

Foi contemplando as ondas do mar em Garopaba, meu lar de alma, que finalmente entendi.

Nós somos como as ondas. Estas, que batem em uma rocha e, no instante seguinte, já desaparecem.

“Como podemos ser tão frágeis?”, refletia.

Em essência, não somos. É só que todo externo se vai rápido.

Hoje sinto compaixão. 

De quem vive no raso sem saber que, no fundo, já está morto.

Se você não contempla, não existe.

Desculpe a profundidade.

Aliás, desculpe não.

Só sei ser assim. E não peço mais perdão por isso.

Aqui o espaço para quem faz questão de ficar na margem acabou.

Porque já mergulhei onde não dá pé faz tempo.

Monólogo interno

obra de arte feita com teias metálicas com uma menina sentada ao fundo

“Ninguém iria notar se você simplesmente desaparecesse e nunca mais escrevesse nada.”

“Como você foi capaz de cometer um erro de português tão idiota naquele artigo?”

“Você está passando vergonha se acha que vai chegar a algum lugar com um blog estúpido.”

Essas eram as linhas da batalha interna, o discurso torturante de minha mente contra mim mesma no último fim de semana.

Decidi reler e revisar alguns dos artigos, poemas e textos que postei desde que criei  coragem de expor minhas palavras na internet e nas redes sociais.

O resultado foi o recém mencionado monólogo silencioso e autodepreciativo comigo mesma.

Às vezes é assim: minha mente começa a falar coisas horrendas e simplesmente se recusa a parar. Algo em mim – talvez uma consciência mais elevada – buscava contra-argumentar.

“Mas houve tantos textos sem nenhum erro.”

“Tantas pessoas já comentaram que gostaram do livro e foram tão carinhosas em comentários por aqui. Algumas até escreveram para dizer que você as inspira!”

“Você chegou até a dar entrevistas para podcasts este ano falando sobre o seu trabalho.”

Parecia não importar. Meu cérebro já havia decidido me machucar.

Não foi a primeira vez que aconteceu. Também duvido que será a última.

Porém, nos últimos tempos descobri algumas formas de encontrar respiro em meio a esse filme de terror que por vezes se instala internamente aqui.

O patriarcado tem culpa, sim.

Na verdade, diria que a grande transformação tem sido compreender melhor o porquê se desencadeia esse processo de descida ao inferno da impostora dentro de mim.

O patriarcado é a primeira razão. Isso não é “mimimi” ou vitimismo. 

Acontece que todas as mensagens subliminares da sociedade gritam à mulher: “você só merece um lugar de destaque se for perfeita – física e intelectualmente. Nada menos que perfeita.” (Naomi Wolf explica bem a construção de tal mecanismo em “O Mito da Beleza”, recomendo a leitura). 

Aí já está o primeiro entrave. Afinal, a perfeição é uma exigência muito elevada. Errar é premissa básica de ser humano.

Então, com suas narrativas, a sociedade ocidental forja dentro do inconsciente feminino esta mensagem: “não adianta nem tentar. Esconda-se. De preferência, no vazio invisível do trabalho doméstico.”

Essa lógica foi embutida a fórceps dentro de mim pela mídia, pela disparidade salarial, por todo o contexto que me cerca – e olha que, dentro de casa, tive uma criação muito livre, nunca fui encaixada em um estereótipo pelos meus pais, por exemplo.

Buda também estava certo: domine sua mente, ou ela o dominará

A segunda razão é que a mente tem mesmo essa tendência de não parar de falar quando se apega a determinado assunto. Aí só Yoga entra mesmo para me salvar.

Somente a respiração, o centramento, a meditação são capazes de me fazer perceber que quando algo dentro de mim está tagarelando maldades, muito provavelmente, é a minha mente. Esta, condicionada por conceitos e pressões sociais, que não é a minha verdadeira essência.

A prática diária me fez compreender, como diz minha professora Maria Nazaré Cavalcanti, que a mente é nada mais que uma bailarina tímida. 

Quando elevamos a consciência pela prática, ela se aquieta. É aí que mora a liberdade. Só assim a batalha interior finda.

E por que decidi partilhar um artigo sobre isso?

Porque imagino que você – especialmente se for mulher nesta sociedade machista – já deixou de fazer algo que gosta, ou até de acreditar e bancar alguns de seus sonhos, por conta desse tipo de tortura mental programada como um software de computador.

Portanto, queria frisar aqui:

  1. Você não está sozinha;
  2. Você não precisa ser perfeita;
  3. Não deixe de percorrer seu caminho e fazer o que ama por conta desse peso;
  4. Cerque-se de pessoas que elevam sua autoestima – e não o contrário;

De minha parte, o que posso dizer é que também não vou ceder à mente. Vou continuar aqui.

Rabiscarei minhas palavras e as deixarei soltas ao vento, partilhando um pouco do que acredito com o mundo. 

Mesmo sabendo que não serei perfeita. Nem tendo certezas absolutas sobre para onde o caminho me levará.

Sei que vou errar. Talvez seja criticada. Ou mesmo ignorada.

Ainda assim… Não. Vou. Parar. Porque hoje reconheço que meu processo nunca foi sobre a chegada. Ele tem sido sobre estar em movimento.

Não deixe esta sociedade doente, preconceituosa e julgadora destruir seu sonho. Qualquer que seja.

Parafraseando Emicida:

“Você é o(a) maior representante do seu sonho na face da Terra”.

Não esqueça disso quando estiver em uma das suas batalhas internas.




Eu queria estancar tua dor

eu e minha amiga Carolina Marco

Sinto tua perda, de certa forma, como se fosse minha. É estranha, desconfortável, agoniante a distância. 

Ouvir lágrimas em áudios pelo WhatsApp. Ser incapaz de estender os braços para ti.

Tantas vezes a vida já nos fez chorar juntas. Algumas lágrimas de tristeza, fosse por conta de um relacionamento ou uma situação difícil no trabalho.

Outras, de alegria inexplicável. Como aquela vez ouvindo a Lana em São Paulo debaixo de uma lua cheia mágica e incrível, parecendo encomendada para tornar aquele momento ainda mais perfeito.

E agora, no meio deste luto tão inimaginável e inesperado pelo qual tu passa, sequer posso oferecer um abraço. É doído demais.

Sabe, às vezes penso que 2020 é o maior baque que nossa geração já sofreu. A gente não tinha dimensão do que é passar por uma espécie de guerra. Ou, como está acontecendo aqui no Brasil, um verdadeiro genocídio.

Enfim, descobrimos. É excruciante.

Amiga, eu queria ser capaz de diminuir tua dor – assim como a dos quase 170 mil brasileiros e brasileiras que já perderam pessoas amadas nesta pandemia.

Penso que mesmo nós, que continuamos vivos, morremos um pouco junto com eles.

Queria ter o poder de diminuir tanto sofrimento. Só que não tenho. Porque, invariavelmente, agora caberá a ti viver essa dor. 

O luto vai exigir o espaço dele.

Em algum momento, talvez ignorá-lo até pareça mais simples. Mas não funciona assim. Aliás, tem me preocupado essa recusa coletiva em nosso país de encarar a morte.

Penso que é absolutamente insano que o Brasil ainda tenha tamanho número de pessoas que só pensam em mover a máquina do dinheiro, esquecendo de que a alma precisa do seu momento também. 

Perder alguém deixa marcas que não podem ser mascaradas.

Então, chore. Chore rios, oceanos. Chore ainda tudo que precisar chorar. Depois o tempo vai encarregando de cicatrizar o coração. Mas a dor é um estágio. Também é parte da cura.

É por poder te oferecer tão pouco agora que compartilho essas palavras, em uma tentativa – talvez boba – de consolo. 

Só precisava dizer que a memória de quem amamos permanece conosco.

Meu coração está contigo.

*Dedico este texto à minha amiga Carolina Marco que, no último fim de semana, perdeu sua avó Adelina Tarouco para o Covid-19. Também, de certa forma, a todas as pessoas que tiveram de lidar de forma tão abrupta, dolorosa e inesperada com a morte este ano.

O paradoxo

foto de uma folha boiando na água

Ouço a chuva lá fora e sinto meus olhos cansados. Acho que já passou das 22h. Não posso ter certeza. Há tempos que já não durmo com o celular próximo.

Durante este dia inteiro algo me arranhou internamente. Essas palavras aqui imploravam pelo encontro com o papel, pois há algo em mim que busca compreensão. 

Necessito de algum vestígio de clareza sobre o paradoxo.

O imenso, assustador e magistral paradoxo que é 2020. Pensar nele me dói de tantas maneiras.

Há o sofrer ainda mais acentuado dos que já sofrem. A insanidade do homem se voltando contra ele mesmo.

Aquele negacionismo que lotou as praias no último feriado. A descrença egocêntrica dos que se recusam a usar uma máscara e acabam por revelar sem querer o que há de mais insensível ou ignorante dentro de si mesmos. 

Não sei porque essas coisas me doem tanto. Mas foram raros os dias em que não chorei.

E era mais fácil chorar quando havia braços que me acolhessem para secar as lágrimas. 2020 não teve.

Só havia meus meus próprios braços ali e foi neles que me envolvi. Simplesmente não houve saída senão o amor-próprio.

Quando deitei na cama vazia e chorei, fui eu quem disse a mim mesma: “isso também vai passar”. É aí que o paradoxo se acentua.

Surgiu mais um ponto de interrogação na pureza deste reencontro comigo mesma. Me acolher e trazer o amor mais importante de volta – o próprio – tem sido talvez a parte mais doce para mim neste amargo ano.

O ápice de sua contradição.

Eu amo e odeio 2020. A parte de odiar é mais fácil, pois o ódio sempre é, mas também não consigo deixar de ver beleza escondida em tudo.

Não sei porque sou assim. Simplesmente sou incapaz de não ver algo de belo na vida, mesmo quando todos buscam me convencer do contrário.

Não posso crer que este planeta é horrível e o mundo é um lugar feio.

Sou mais da opinião de que nós é que pintamos tudo de cinza com nossa pressa e falta de sensibilidade. Aqui poderia ser muito mais colorido.

Falando em colorir, amanhã quero pintar alguma coisa. Ou quem sabe procurar algo interessante para fotografar.

Porque estou chegando à conclusão de que talvez estas palavras aqui não solucionem o paradoxo.

Talvez ele não tenha de ser solucionado, apenas atravessado.

E no meu ouvido há algo que sempre parece sussurrar incansavelmente até por trás dos pensamentos: o único caminho é a arte.

Sem ela, tudo isso é pura insanidade.